Cada mão tem cinco dedos e, às vezes,
parece que não bastam. Quando eu enchi minhas mãos com a cara de uma fulana,
foi de uma violência pré-histórica, mas eu queria ter tido mais dedos, mais! A
ânsia era de alcançar-lhe, além dos ouvidos, todos os orifícios que pudessem contê-la
em seu ímpeto de me agredir.
Foi meu momento bestial na vida dela e na
minha. Contam
que essa bestialidade é cotidiano dela, mas não sendo o meu, é
outra história. Dizem, que mesmo inabituais,
todos passam por algum momento assim. Digo por mim: é vexatório. Principalmente
o depois.
Meu amigo Fred teve um desses momentos, e
nele, um dedo mudou seu destino.
– Como foi isso, Fred? – Eu perguntei,
enquanto discutíamos aquele livro dele que virou sucesso.
– Ah, eu estava no começo da minha vida de
empregado, numa Companhia multinacional. Você sabe, nasci pra liderar. Fazia
poucos dias que a empresa havia me contratado, quando um colega teve de sair
para cobrir outro posto, mas o posto dele não podia ficar a descoberto, e me
mandaram ocupar a vaga dele. Quando ele retornou, ficou furioso, disse nomes
feios.”
Fiquei curiosa para arrancar de Fred cada
um dos “nomes feios”. Ora, esse Fred é um homem que trabalha com palavras!,
Frederico não acha nenhuma palavra feia, propriamente. No máximo, inadequada.
Fiquei com a cabeça cheia de suposições,
mas não arranquei nada dele. Vieram-me à ideia milhões de prováveis e
impronunciáveis combinações em alemão, russo, aramaico e até na “única língua
que o diabo respeita”, segundo Chico Buarque, o húngaro. Podia ser uma palavra
assim, que ele não acharia bonita, por ser diferente? Não, Fred não era
preconceituoso, que eu soubesse. Havia de ter sido uma palavra ofensiva ao seu
brio.
Não a confessou. Só o crime: munira-se de
uma cadeira, e como o incrível hulk, arremessara-a barbaramente contra seu
ofensor. Decepara-lhe um dedo.
– Meu sucesso Executivo foi aniquilado com
esse meu gesto primitivo. Fui demitido, e a mancha da violência fixou-se em meu
currículo para sempre. Iniciou-se uma longa carreira de pesares unilaterais,
que durou 30 anos. A frase: “Você tirou sangue de outro ser humano” dita a mim,
pelo meu superior na Companhia, ainda ressoa em meus ouvidos. Segui outro rumo.
Pra Executivo não ia servir mais. Nem o Tonho. Bom moço ele, apesar desse
evento. Me arrependi. Éramos jovens e cabeças-quente. Eu sempre sabia que ele
vivia com medo de mim, cruzando ruas diferentes, pra se desviar – lamentou. – Eu,
doido pra esbarrar nele, conversar! Mas o cão é que Tonho, sabendo que eu queria
isso, mais medo tinha d’eu tá na cata pra matar ele! Fugia!... Vivia acossado!
Aí eu mais me perturbava. Parei de tentar encontrar ele, pra ele ter sossego,
parar de interpretar ao contrário as minhas intenções. Um dia, eu estava em uma
grande loja de departamento, escolhendo um papel de parede para o quarto de
minha neta, junto com minha esposa (íamos presentear minha nora grávida),
quando o Tonho chegou a mim, começou a falar sobre aquele material, que era de
boa qualidade, e não parou mais. Fez que eu me interessasse foi pelo quarto
todo do bebê! Não estava me reconhecendo, eu pensei. Mas também foi falando que
aquela lojona era dele, convidou a gente pra sala dele, ofereceu café.
Sentamos, fechamos negócio parcialmente com ele, naquele papel de parede e nas
outras coisas para o quarto da minha netinha que chegaria. Tonho contou que
também era avô e feliz. E sem o dedo mínimo, segurava a xícara com seu café.
Muito constrangido, eu disse a ele: ‘Todos os recados que lhe mandei foram pra
pedir perdão, dizer que me arrependi do arroubo daquele dia. Aquele dia mudou
minha vida, meus sentimentos. Naquele dia, eu chorei, feito criança. Tirei
sangue de outro ser humano. Apenas eu deveria ter perdido o emprego, Tonho. Não
achei justo você também ter sido mandado embora. Eu sou o Fred, você não está
me reconhecendo? Ele depôs a xícara sobre a mesa, a mão tremeu um pouco, e
respondeu:
– Pensei que atendendo você, pessoalmente,
você me achasse um cara legal, me perdoasse por ter ofendido sua mãe e não
quisesse mais me matar. Pra defender a
honra de minha mãe, eu teria arrancado sua mão, Fred. Você só decepou meu dedo.
Aquele foi o dia em que Fred lavou a sua
alma e a de Tonho. Não surgiu uma amizade, mas findou-se uma longa carreira de
pesares, iniciada numa multinacional, em que um dedo mudou para sempre a vida
de dois homens.
* Trecho
do livro: ARREBOL, de Maria Montillarez
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Boa leitura!
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