20 de maio de 2016

EU PLANTEI A ARMADILHA? — Opção sofisticada pela penúria —, da escritora Maria Montillarez

Trecho do livro EU PLANTEI A ARMADILHA? — Opção sofisticada pela penúria —, da escritora Maria Montillarez:



Fazia frio. A fome também era outro incômodo, e com ela, a sede. Estes são problemas comuns a muitos seres humanos, embora variem em alguns aspectos. Pode até
nalguns casos a fome, o frio e a sede serem de ordem intelectual, sentimental, mas, ninguém está a salvo de sentir um ou todos esses sentimentos juntos. A grandeza e a pequenez de ser gente é que distingue um sofredor do outro.
Era isso que Aryana pensava, enquanto em vão apertava os dentes para que se atritassem menos. Durante o dia fora quente como podia se supor que seria o próprio inferno. Havia se encolhido enquanto coisas explodiam, estralavam. A temperatura oscilara muito, porém, o calor foi predominante a maior parte do tempo. Ali era silencioso. Aquela porta de aço, acima da escada de numerosos degraus, e aquelas paredes revestidas de concreto, certamente também possuíam mais algum revestimento, evitando a chegada de sons ali.
Ela se encolhera em um descanso. Tivera tempo de explorar o local antes de o fogo lamber a casa em cima, mas não fizera, agora se perguntava por que deixara se dominar pela raiva e improvisara, afinal, tinha até o dia seguinte para sair da casa. Teria dado tempo explorar o que havia ali embaixo, trazer algumas coisas básicas para sobrevivência, se precisasse, pois não fazia ideia de quanto tempo ficaria ali.
Agora começava a fazer frio, e se intensificara muito, os bombeiros resfriaram o local acima dela, e Aryana praguejava:
— Será que esses filhos-da-puta jogaram gelo ali em cima? Será que gastaram toda a porra do hidrogênio da cidade no incêndio da casa dos sete anões?
Temeu, por algum tempo, se aprofundar na escuridão do local para procurar algum agasalho. Nem sabia exatamente o que temia. Seria a morte? Nunca havia temido a morte, mas naqueles instantes sentira algo que se parecia com temor, embora se ausentasse de um sentir consciente; era mais no âmbito do instinto, esse que é ativado em qualquer ser vivo ante a percepção de alguma ameaça à própria vida.
Começava a se perguntar se aquele era apenas um momento de miséria em sua vida, em que tudo viera dando errado, e ela acabara naquele lugar escuro, ou se aquilo se tornaria permanente. Então, ao pensar na permanência da situação, achou a morte interessante, e a espécie de medo cessou. Levou a mão à barriga e pensou no bebê que carregava. Admitiu para si mesma ser a primeira vez em que pensava nele como ele mesmo, não como uma moeda de troca para chantagear um homem alvo. Primeiro usara-o para tentar “adoçar” Graco, depois, para manobrar Magno.  Tentara mesmo manobrar Magno, ou apenas fora se deixando levar pelas circunstâncias?
— Eu me deixei levar — falou para a barriga. — Fui acreditando devagarzinho que eu e Graco poderíamos ter algum... presente ou futuro. Mas pra que fui pensar em futuro com aquele otário? Ah, o que estou fazendo, falando com um feto? Droga! Preciso mesmo é me mover, fazer alguma coisa. Não posso ficar aqui me lamentando pra um feto que nem vai nascer. Você não vai nascer, ouviu, embrião?! — gritou. — Claro que não ouviu. Você nem tem ouvidos. Não é gente nem nada ainda — sorriu e se levantou, tentou apalpar as paredes. Seguiu tateando corredor afora, por vários metros. Sua mão tocou algo e, como ao tato se parecesse um interruptor de energia, ela o acionou. O local se iluminou, e ela avistou uma porta no fim de um corredor. Estava destrancada, mas era uma porta tipo corta-incêndio, mas muito bonita. Ela a empurrou, e luzes se acenderam acionadas por sensores de calor. Onde estava escuro e ela entrava, luzes se acendiam, bem como as outras se apagavam quando ela saía do ambiente. Aryana abriu um largo sorriso de satisfação e espanto ao ver a imensa sala à sua frente, e outros cômodos enormes e lindamente decorados.
Havia móveis cobertos, e foi descobrindo-os. Explorando o local, entendeu que se tratava de uma casa luxuosa, no subsolo da casinha de Magno Campestrini, que ardera o dia inteiro.
Estava impressionada com o luxo. Mas se era de Magno Campestrini, o homem mais rico da cidade, o espantoso era ele vir morando naquela casinha que ela ateara fogo. Porém, uma pergunta lhe veio à mente: por que aquela casa subterrânea existia? Por que Magno mantinha aquele lugar? E a história de haver vendido a casa, como se encaixava naquele investimento subterrâneo e vice-versa? Que planos Magno teria para aquele lugar imenso e lindo?
Essas perguntas teriam de esperar as respostas para outro momento, pois o cansaço a estava vencendo, além da fome, frio e sede. O cansaço a tomava mais e mais. Encontrou a cozinha. Tudo perfeitamente habitável, como se esperasse alguém. Efetivamente alguém fazia a manutenção daquele lugar. Como não percebera nada? A negra devia saber de tudo. Por essas e outras era que odiava negros. Não podia confiar neles. Mas podia confiar em alguém no mundo, além de si mesma?
Bebeu água, abriu uma caixa de leite, encheu um copo e bebeu também, como se estivesse há anos sem comer. Seus pensamentos, porém, continuavam confusos. Era inteligente, mas aquele dia fora muito para um corpo carregando outro dentro. Enfiou um pacote de milho pra pipoca no micro-ondas. Comeu-as com voracidade. Nada estava fazendo sentido. Talvez precisasse dormir um pouco.
Cambaleou até um quarto e desabou sobre uma cama. Dormiu.


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