Fazia frio. A
fome também era outro
incômodo, e com ela, a sede. Estes são problemas comuns a muitos seres humanos,
embora variem em alguns aspectos. Pode até
nalguns casos a fome, o frio e a
sede serem de ordem intelectual, sentimental, mas, ninguém está a salvo de
sentir um ou todos esses sentimentos juntos. A grandeza e a pequenez de ser
gente é que distingue um sofredor do outro.
Era isso que
Aryana pensava, enquanto em vão apertava os dentes para que se atritassem
menos. Durante o dia fora quente como podia se supor que seria o próprio
inferno. Havia se encolhido enquanto coisas explodiam, estralavam. A temperatura
oscilara muito, porém, o calor foi predominante a maior parte do tempo. Ali era
silencioso. Aquela porta de aço, acima da escada de numerosos degraus, e
aquelas paredes revestidas de concreto, certamente também possuíam mais algum
revestimento, evitando a chegada de sons ali.
Ela se
encolhera em um descanso. Tivera tempo de explorar o local antes de o fogo
lamber a casa em cima, mas não fizera, agora se perguntava por que deixara se
dominar pela raiva e improvisara, afinal, tinha até o dia seguinte para sair da
casa. Teria dado tempo explorar o que havia ali embaixo, trazer algumas coisas
básicas para sobrevivência, se precisasse, pois não fazia ideia de quanto tempo
ficaria ali.
Agora começava
a fazer frio, e se intensificara muito, os bombeiros resfriaram o local acima
dela, e Aryana praguejava:
— Será que
esses filhos-da-puta jogaram gelo ali em cima? Será que gastaram toda a porra
do hidrogênio da cidade no incêndio da casa dos sete anões?
Temeu, por
algum tempo, se aprofundar na escuridão do local para procurar algum agasalho.
Nem sabia exatamente o que temia. Seria a morte? Nunca havia temido a morte,
mas naqueles instantes sentira algo que se parecia com temor, embora se
ausentasse de um sentir consciente; era mais no âmbito do instinto, esse que é
ativado em qualquer ser vivo ante a percepção de alguma ameaça à própria vida.
Começava a se
perguntar se aquele era apenas um momento de miséria em sua vida, em que tudo
viera dando errado, e ela acabara naquele lugar escuro, ou se aquilo se tornaria
permanente. Então, ao pensar na permanência da situação, achou a morte
interessante, e a espécie de medo cessou. Levou a mão à barriga e pensou no
bebê que carregava. Admitiu para si mesma ser a primeira vez em que pensava
nele como ele mesmo, não como uma moeda de troca para chantagear um homem alvo.
Primeiro usara-o para tentar “adoçar” Graco, depois, para manobrar Magno. Tentara mesmo manobrar Magno, ou apenas fora
se deixando levar pelas circunstâncias?
— Eu me deixei
levar — falou para a barriga. — Fui acreditando devagarzinho que eu e Graco
poderíamos ter algum... presente ou futuro. Mas pra que fui pensar em futuro
com aquele otário? Ah, o que estou fazendo, falando com um feto? Droga! Preciso
mesmo é me mover, fazer alguma coisa. Não posso ficar aqui me lamentando pra um
feto que nem vai nascer. Você não vai nascer, ouviu, embrião?! — gritou. —
Claro que não ouviu. Você nem tem ouvidos. Não é gente nem nada ainda — sorriu e
se levantou, tentou apalpar as paredes. Seguiu tateando corredor afora, por
vários metros. Sua mão tocou algo e, como ao tato se parecesse um interruptor
de energia, ela o acionou. O local se iluminou, e ela avistou uma porta no fim
de um corredor. Estava destrancada, mas era uma porta tipo corta-incêndio, mas
muito bonita. Ela a empurrou, e luzes se acenderam acionadas por sensores de
calor. Onde estava escuro e ela entrava, luzes se acendiam, bem como as outras
se apagavam quando ela saía do ambiente. Aryana abriu um largo sorriso de
satisfação e espanto ao ver a imensa sala à sua frente, e outros cômodos
enormes e lindamente decorados.
Havia móveis
cobertos, e foi descobrindo-os. Explorando o local, entendeu que se tratava de
uma casa luxuosa, no subsolo da casinha de Magno Campestrini, que ardera o dia
inteiro.
Estava impressionada
com o luxo. Mas se era de Magno Campestrini, o homem mais rico da cidade, o
espantoso era ele vir morando naquela casinha que ela ateara fogo. Porém, uma
pergunta lhe veio à mente: por que aquela casa
subterrânea existia? Por que Magno mantinha aquele lugar? E a história de
haver vendido a casa, como se encaixava naquele investimento subterrâneo e
vice-versa? Que planos Magno teria para aquele lugar imenso e lindo?
Essas perguntas
teriam de esperar as respostas para outro momento, pois o cansaço a estava
vencendo, além da fome, frio e sede. O cansaço a tomava mais e mais. Encontrou
a cozinha. Tudo perfeitamente habitável, como se esperasse alguém. Efetivamente
alguém fazia a manutenção daquele lugar. Como não percebera nada? A negra devia
saber de tudo. Por essas e outras era que odiava negros. Não podia confiar
neles. Mas podia confiar em alguém no mundo, além de si mesma?
Bebeu água,
abriu uma caixa de leite, encheu um copo e bebeu também, como se estivesse há
anos sem comer. Seus pensamentos, porém, continuavam confusos. Era inteligente,
mas aquele dia fora muito para um corpo carregando outro dentro. Enfiou um
pacote de milho pra pipoca no micro-ondas. Comeu-as com voracidade. Nada estava
fazendo sentido. Talvez precisasse dormir um pouco.
Cambaleou até
um quarto e desabou sobre uma cama. Dormiu.
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