Trecho do livro "O raio não O partiu", da escritora Maria Montillarez:
"Dileto amigo Irving,
Quisera eu ter podido escrever-lhe em
momentos de fortuna. Firmamos que assim não se desse.
No exercício de escrever-lhe estes
caracteres, empenho toda força que me resta.
Portanto, você sabe, com os olhos
sobre estas palavras, que meu infortúnio é dado firme. Suplico-lhe que me venha
consolar. A você atribuo o ofício e permito que o tente.
Antigos oponentes seus foram-se
definitivamente. Não haverá reações desfavoráveis a sua estadia aqui. Sustenho-me
na esperança d’este meu clamor alcançá-lo com a mesma urgência que espero
valer-me sua presença.
Não pertenço a este lugar, se ele não o
contém, e não pertenço a mais ninguém, além de você.
Dély Alencar."
Irving soluçou, contorceu-se. Doeu-se
ali por mais uns minutos, absoluto senhor de sua solidão; igualmente senhor absoluto
do recrudescente, inclemente e silencioso revés de sua sorte.
A angústia ia afunilando-lhe mais e mais
a garganta, tirando-lhe o fôlego. Aquela carta que fora tão ansiada, dia após
dia, agora lhe parecia haver chegado demasiado tarde. Com sacrifício e extenso
sofrimento, ele suspirou:
— Oh Meu Jardim, não me escreveu tarde
demais? Querida, já não lhe servirei de nada! De nada!
Com dificuldade e apoiando-se a uma
bengala, andou para a rua; cruzou-a adiante e sentou-se à mesa do Café Deby.
Vestida de garçonete, a proprietária do
estabelecimento olhou para ele e veio em sua direção.
— Está melhor hoje, hem? Animou-se a
sair de seu casulo?
— Estou bem, Deby. Não há nada de errado
comigo.
— Lindo! O otimismo é positivo, mesmo
diante do inegável. No entanto, essa mania que você tem de minimizar seus
desconfortos, embora nobre, é o maior erro a lhe recair à cabeça. Eu, e as
pessoas preocupadas com seu bem-estar, dispensamos sua parte meramente
otimista; preferimos aquela real: se está bem, está bem; se está mal, está mal.
Baseados nessa verdade, é que aumentamos ou diminuímos as atenções com você. De
resto, permaneça lutando. É a parte que lhe toca — respirou, antes de
perguntar: — Ving, que olhos de lástima são esses?
— Recebi isto — estendeu à Deby o
envelope. Ela correu os olhos sobre aquelas linhas.
— Caligrafia magnífica — observou —,
parece letra de professora, assim, cursiva, bem desenhadinha... Isto veio mesmo
dela? São palavras tocantes! Mas, tem certeza de que é a letra dela, e não
algum tipo de armadilha? É letra de Dély, a mesma mocinha da foto? A sua, a
nossa Dély?
Deby buscava certificar-se em quase
incrédulas, alegria e esperança.
— Aquela foto tem trinta anos.
Certamente Dély não é mais "a mocinha" da foto.
— Ora, claro que não. Eu quis apenas me
certificar de não existir dúvida de que esta letra haja sido realmente
produzida por Dély.
—
Entendi, querida, entendi. É a letra dela sim; da Dély que um dia foi minha, e
a quem pertence, ainda hoje e eternamente, o meu amor e minha vida. Mesmo esta
vida medíocre que levo e que namora a ideia de me deixar, sob o acerbado
protesto de ardorosos fãs meus.
— Homem modesto! — Deby chasqueou num
breve sorriso, e observando-o cabisbaixo, impostou segurança à voz, acresceu
algum otimismo a ela e exclamou: — Você esperou tanto por esse sinal de vida
dela! Oh, finalmente o sinal chegou! E, olha, você sabe que não esperou
sozinho. Todos nós o acompanhamos nessa longuíssima vigília. Deveria estar
exultante, não?
— E estou — respondeu sem entusiasmo
nenhum.
— Ving, sinceramente, eu fiquei mais
alegre quando fiz um canal neste dente aqui, do que você, ante essa fabulosa
restauração de suas esperanças em rever sua amada e idolatrada Dély, que é no
que devem constituir esses dizeres da missiva! Está assim, por que ela não sabe
de seu estado, não é querido?
— Como ela saberia, se não nos
comunicamos?
— O que você fará?
— Vou voltar ao meu "casulo" e
chorar mais; depois, corto os pulsos e deixo a morte encerrar o assunto. Tenho
saldo zero de forças pra reagir a isto Deby — sacudiu o envelope, irritado,
deixando transparecer a indignação que aquela situação eclodia dele —, e estas
palavras aqui contidas consumiram a raspa da energia havida no recipiente de
minha existência — mudou o semblante de irritação em tristeza e resignação. — O
ressurgimento das esperanças, pouco pode fazer contra tamanha debilidade
alojada no caco de homem que sobrou de mim.
— Existe verdade refinada nessas tuas palavras
aí, exceto pelo adjetivo "caco". Não se autodenomine caco, faz favor.
Apesar d’eu saber que tua realidade é muito pior do que a descreve e dá a
conhecer, ainda assim, Ving, eu não duvidaria se acontecesse um milagre. Porém,
independente de milagre, essas linhas... — Deby apontou o envelope que ele
segurava. —... elas dizem muito mais do que eu li, e você sabe o que é que
dizem, não sabe?
— Saber claramente, eu não sei; mas,
tenho grande ligação com Dély, daí que posso sentir. Sim, interpreto o que há
nas entrelinhas: algo aconteceu, tornando Dély sozinha e deprimida. E me
pergunto o que pode ter acontecido. Se o energúmeno, seu Paulo, acaso houver
morrido, devem ter restado à Dély, os filhos.
— Aguenta uma viagem tão longa, Ving?
— Essa hipótese, Flor-de-Lótus, se
ajusta ao suicídio!
— Verdade, seu estado é bem delicado...
Bem, escreva de volta, solicitando que ela venha, então!
— Se houvesse a possibilidade, ela
decerto já teria vindo. Não enviaria correspondência, como fez.
— Vai ver que ela pensou em você estar
comprometido com outra mulher, e, vir de supetão, poderia te pôr em
dificuldades — pausou antes de perguntar: — Sua febre persiste, Ving?
— Sim.
— Todos notam seu casaco de esquimó.
Está fazendo 40°C
lá fora. Tem tomado seus medicamentos e se alimentado?
— Sim.
— Zândika não trouxe novidades, não é?
— Nenhuma, por enquanto.
— Hei, Deby! Você virou atendente
exclusiva do pinguim aí? — gritou um homem corpulento, sentado à outra mesa,
junto à janela. — E pelo amor de Deus, aumente a potência desse ar
condicionado! Ninguém aguenta tanto calor! Estou derretendo!
Deby virou-se para uma funcionária:
— Atenda o cavalheiro ali, por favor!
E sentou-se à mesa com Irving. Deby, em
seus quase cinquenta anos, era branca, de olhos bem azuis; bastante alta e
esguia. No rosto, as feições eram duras e não expunha, ainda, rugas em
quantidade que lhe denunciassem a idade.
— Aquele homem é dos poucos frequentadores
deste café, que não conhece você, Ving.
— Ninguém é unanimidade, Flor-de-Lótus.
— Não zombe. Embora o assédio sobre você
haja diminuído, precisa ser cauteloso; não pode sair por aí, nesse estado
dramático, inda por cima sozinho.
— Não estou sozinho — escarneceu
risonho. Veja esta companheira que Pietro me deu!
— Ving, é uma bela bengala, mas, convenhamos!...
— Tem razão, tem razão. Aconteceu que
esta carta me deu tanta aflição que eu quis correr. Se correr era impossível,
pelo menos saí a caminhar até aqui.
— O que Zândika te disse, dessa vez?
— Você ainda não a viu desde que ela
voltou do congresso de medicina?
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