16 de maio de 2016

O raio não O partiu, da escritora Maria Montillarez

Trecho do livro "O raio não O partiu", da escritora Maria Montillarez:



"Dileto amigo Irving,

 Quisera eu ter podido escrever-lhe em momentos de fortuna. Firmamos que assim não se desse.
No exercício de escrever-lhe estes caracteres, empenho toda força que me resta.
Portanto, você sabe, com os olhos sobre estas palavras, que meu infortúnio é dado firme. Suplico-lhe que me venha consolar. A você atribuo o ofício e permito que o tente.
Antigos oponentes seus foram-se definitivamente. Não haverá reações desfavoráveis a sua estadia aqui. Sustenho-me na esperança d’este meu clamor alcançá-lo com a mesma urgência que espero valer-me sua presença.
Não pertenço a este lugar, se ele não o contém, e não pertenço a mais ninguém, além de você.

Dély Alencar."

 Irving soluçou, contorceu-se. Doeu-se ali por mais uns minutos, absoluto senhor de sua solidão; igualmente senhor absoluto do recrudescente, inclemente e silencioso revés de sua sorte.
A angústia ia afunilando-lhe mais e mais a garganta, tirando-lhe o fôlego. Aquela carta que fora tão ansiada, dia após dia, agora lhe parecia haver chegado demasiado tarde. Com sacrifício e extenso sofrimento, ele suspirou:
— Oh Meu Jardim, não me escreveu tarde demais? Querida, já não lhe servirei de nada! De nada!
Com dificuldade e apoiando-se a uma bengala, andou para a rua; cruzou-a adiante e sentou-se à mesa do Café Deby.
Vestida de garçonete, a proprietária do estabelecimento olhou para ele e veio em sua direção.
— Está melhor hoje, hem? Animou-se a sair de seu casulo?
— Estou bem, Deby. Não há nada de errado comigo.
— Lindo! O otimismo é positivo, mesmo diante do inegável. No entanto, essa mania que você tem de minimizar seus desconfortos, embora nobre, é o maior erro a lhe recair à cabeça. Eu, e as pessoas preocupadas com seu bem-estar, dispensamos sua parte meramente otimista; preferimos aquela real: se está bem, está bem; se está mal, está mal. Baseados nessa verdade, é que aumentamos ou diminuímos as atenções com você. De resto, permaneça lutando. É a parte que lhe toca — respirou, antes de perguntar: — Ving, que olhos de lástima são esses?
— Recebi isto — estendeu à Deby o envelope. Ela correu os olhos sobre aquelas linhas.
— Caligrafia magnífica — observou —, parece letra de professora, assim, cursiva, bem desenhadinha... Isto veio mesmo dela? São palavras tocantes! Mas, tem certeza de que é a letra dela, e não algum tipo de armadilha? É letra de Dély, a mesma mocinha da foto? A sua, a nossa Dély?
Deby buscava certificar-se em quase incrédulas, alegria e esperança.
— Aquela foto tem trinta anos. Certamente Dély não é mais "a mocinha" da foto.
— Ora, claro que não. Eu quis apenas me certificar de não existir dúvida de que esta letra haja sido realmente produzida por Dély.
 — Entendi, querida, entendi. É a letra dela sim; da Dély que um dia foi minha, e a quem pertence, ainda hoje e eternamente, o meu amor e minha vida. Mesmo esta vida medíocre que levo e que namora a ideia de me deixar, sob o acerbado protesto de ardorosos fãs meus.
— Homem modesto! — Deby chasqueou num breve sorriso, e observando-o cabisbaixo, impostou segurança à voz, acresceu algum otimismo a ela e exclamou: — Você esperou tanto por esse sinal de vida dela! Oh, finalmente o sinal chegou! E, olha, você sabe que não esperou sozinho. Todos nós o acompanhamos nessa longuíssima vigília. Deveria estar exultante, não?
— E estou — respondeu sem entusiasmo nenhum.
— Ving, sinceramente, eu fiquei mais alegre quando fiz um canal neste dente aqui, do que você, ante essa fabulosa restauração de suas esperanças em rever sua amada e idolatrada Dély, que é no que devem constituir esses dizeres da missiva! Está assim, por que ela não sabe de seu estado, não é querido?
— Como ela saberia, se não nos comunicamos?
— O que você fará?
— Vou voltar ao meu "casulo" e chorar mais; depois, corto os pulsos e deixo a morte encerrar o assunto. Tenho saldo zero de forças pra reagir a isto Deby — sacudiu o envelope, irritado, deixando transparecer a indignação que aquela situação eclodia dele —, e estas palavras aqui contidas consumiram a raspa da energia havida no recipiente de minha existência — mudou o semblante de irritação em tristeza e resignação. — O ressurgimento das esperanças, pouco pode fazer contra tamanha debilidade alojada no caco de homem que sobrou de mim.
— Existe verdade refinada nessas tuas palavras aí, exceto pelo adjetivo "caco". Não se autodenomine caco, faz favor. Apesar d’eu saber que tua realidade é muito pior do que a descreve e dá a conhecer, ainda assim, Ving, eu não duvidaria se acontecesse um milagre. Porém, independente de milagre, essas linhas... — Deby apontou o envelope que ele segurava. —... elas dizem muito mais do que eu li, e você sabe o que é que dizem, não sabe?
— Saber claramente, eu não sei; mas, tenho grande ligação com Dély, daí que posso sentir. Sim, interpreto o que há nas entrelinhas: algo aconteceu, tornando Dély sozinha e deprimida. E me pergunto o que pode ter acontecido. Se o energúmeno, seu Paulo, acaso houver morrido, devem ter restado à Dély, os filhos.
— Aguenta uma viagem tão longa, Ving?
— Essa hipótese, Flor-de-Lótus, se ajusta ao suicídio!
— Verdade, seu estado é bem delicado... Bem, escreva de volta, solicitando que ela venha, então!
— Se houvesse a possibilidade, ela decerto já teria vindo. Não enviaria correspondência, como fez.
— Vai ver que ela pensou em você estar comprometido com outra mulher, e, vir de supetão, poderia te pôr em dificuldades — pausou antes de perguntar: — Sua febre persiste, Ving?
— Sim.
— Todos notam seu casaco de esquimó. Está fazendo 40°C lá fora. Tem tomado seus medicamentos e se alimentado?
— Sim.
— Zândika não trouxe novidades, não é?
— Nenhuma, por enquanto.
— Hei, Deby! Você virou atendente exclusiva do pinguim aí? — gritou um homem corpulento, sentado à outra mesa, junto à janela. — E pelo amor de Deus, aumente a potência desse ar condicionado! Ninguém aguenta tanto calor! Estou derretendo!
Deby virou-se para uma funcionária:
— Atenda o cavalheiro ali, por favor!
E sentou-se à mesa com Irving. Deby, em seus quase cinquenta anos, era branca, de olhos bem azuis; bastante alta e esguia. No rosto, as feições eram duras e não expunha, ainda, rugas em quantidade que lhe denunciassem a idade.
— Aquele homem é dos poucos frequentadores deste café, que não conhece você, Ving.
— Ninguém é unanimidade, Flor-de-Lótus.
— Não zombe. Embora o assédio sobre você haja diminuído, precisa ser cauteloso; não pode sair por aí, nesse estado dramático, inda por cima sozinho.
— Não estou sozinho — escarneceu risonho. Veja esta companheira que Pietro me deu!
— Ving, é uma bela bengala, mas, convenhamos!...
— Tem razão, tem razão. Aconteceu que esta carta me deu tanta aflição que eu quis correr. Se correr era impossível, pelo menos saí a caminhar até aqui.
— O que Zândika te disse, dessa vez?
— Você ainda não a viu desde que ela voltou do congresso de medicina?


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