10 de maio de 2016

Trecho do conto "Santina" do livro Arrebol, de Maria Montillarez.

Trecho do conto "Santina" do livro Arrebol, de Maria Montillarez.

Santina

A mãe manda nele desde antes da concepção. Se eu tivesse de escolher alguém para mandar, não o escolheria. Quem manda bem, não manda em qualquer um não. Mandar é ter espírito de liderança, e um bom líder é competente seletivo.Quando eu o conheci, sabia que ele era bronco feito um burro
– Vá pintiá os cabelo, Frederico! Onde já se viu um home desse tamãi andano cuns cabelo desgrinhado!
– Tá bem, mãe.
Obediente, o burro velho ergueu seu um metro e noventa da poltrona e andou a apanhar o pente. Levantou o braço no sentido testa-nuca e, ao alcançar o centro do trajeto o pente parou, como tivesse ouvido a ordem que vinha sequencial:
– Trais um cafirzim. Num tem educação? Venho a tua casa e nem num me dá um cafirzim?
É claro que tomei como uma indireta, mas relevei, porque as mães de burros-velhos são frustradas, portanto, ranzinzas, dado o complexo de fracasso     e de uma vida inteira liderando um asno. Não acatei a ordem como ricocheteasse dele para mim. Ignorei-a. Continuei fazendo o que antes fazia: cachos de uva com uma caneta esferográfica sobre um papel, já com milhares de cachos anteriormente desenhados. Parecia um parreiral. Gosto de uvas, gosto de seus derivados. Do desenho pretensioso ao vinho; o cheiro... Viajo nas uvas!... Faço delas uma terapia ocupacional, especialmente se a mãe do burro velho está gritando a minha volta. Disse que sou tonta, certo dia. Isso eu ouvi, mas não me ofendi. Estava me elogiando, eu acho. Ele trouxe o café. Ela sorveu um gole e reprovou:
– Nossióra dos fii reberdes! Qui diacho de café horrive! Nem num sei se é o pó, se é o açúca pôco, se é farta d’água... Jizuis! Se eu tomu isso, vô direto pru hospitar!
– Descurpe, mãe, Santina gosta do café assim.
– Isso num é café! É água morna! Santina, ocê nem num vem falá cum eu não? Já tô quais ino de vorta pra casa e ocê aí, riscano nesse paper!
Eu não disse nada, e segui rabiscando. Quanto mais ela falava, mais uvas eu rabiscava, mais rápido, mais veloz, mais entusiasmada! Não estava ouvindo nada, nada, nada. De repente um estrondo. A porta da sala bateu.
– Que ventania, meu love! Precisamos botar um pesinho aqui, junto à porta, pra evitar que bata assim.
– Foi mamãe, num foi o vento, Santina.
– Sua mãe? Ela esteve aqui? Quando?
– Santina! Pru qui tem essa mania de quando mãe vem aqui, ocê se dispersa pru riba desse paper e nem num iscuita nem num vê?
– Eu, meu love?
Ele fez uma tromba de burro protestando, que é diferente da tromba de gente, e foi se embriagar. Ele bebia e passava a mão no traseiro da Cristina. Ele, sóbrio, achava que o traseiro dela era a reserva natural mais importante do país. Garantia que era original e não tinha silicone. Puro, puro, purinho!
Eu ficava olhando aquilo e, aí, desenhava facas! Eu disse que gosto de facas? Não, não disse. Tenho um fraco por facas. Quando entro em um supermercado é o que mais aprecio comprar. É um hobby diverso, eu sei, mas tem gente que adora pinguins e os coleciona, embora jamais haja visto um, em presença real. Outros colecionam latas de cerveja... Por que eu não poderia ter fascínio por facas? Não é contra a lei possuir em casa arma branca. O fato era que, quando o burro velho alisava a “reserva natural do país”, transportada por Cristina, e ela se ria gostando, eu desenhava facas. Não sentia ódio, raiva, ciúme, revolta... Confesso que não. Com Cristina eu exercitava a terapia ocupacional de desenhar facas. Ia imaginando todas as que possuía em casa e reproduzindo quantas coubesse no tempo que durava o episódio de alisamento. Depois que ele se cansava de alisá-la e ela de se rir, saíam para comprar mais bebida. Isso era rotina aos sábados. Eu ouvia algum zunido como pedido de autorização. “Posso ir com seu marido, Santina?” Aí eu apertava a caneta e caprichava no desenho da lâmina. Ferro fundido, talvez enferrujado, a caneta não era multicolorida. Eu completava o amarelado da ferrugem com minha imaginação e viajava nas facas!... Ao final do dia, lá vinha o burro velho, cambaleante e feliz, cheirando a bebida e a orgia. Eu nunca via a Cristina voltando.
Essas minhas terapias consumiam resmas inteiras que eu empilhava após as longínquas sessões. Felizmente eu possuía uma renda garantida e não precisava trabalhar fora de casa para manter meu estoque de papel e esferográfica. Eu receberia até o fim da vida, pensão por ter perdido meu primeiro marido durante uma parada militar. Foi um acidente, mas o governo generosamente viu por justo me amparar. Meu primeiro marido era tenente. Ele era um homem bom. Fumava muito, e isso sim, me incomodava, mas não tinha mãe, nem Cristina.
O burro velho cambaleante desabou no sofá da sala. Retirei-lhe os sapatos, as meias, afrouxei-lhe o cinto, abri sua carteira. Encontrei umas notas pequenas e com elas fui ao mercado. Comprei verduras e lhe fiz uma sopinha de legumes, bem temperada, leve, saborosíssima. Preparei um prato para a mãe dele, outro para Cristina. Uma boa moça.
– Cristina! – gritei por ela. Mas, como sempre não respondia, não respondeu, e idem. Depois dessas incursões à cerveja com o burro velho, ela não retornava totalmente embriagada, só um pouco bamba e esfomeada. Depositei o prato de sopa sobre um suporte de sua janela, e uma mão branca e culpada apanhou com ligeireza o prato de sopa quente. Algum tempo depois, devolveu-o melado de sopa e vazio. Recolhi-o e o lavei. Fui dormir.
Pela manhã o burro velho pegou seu terno e foi trabalhar, depois de me beijar demoradamente. Eu gostava do beijo dele. Era do trabalho dele que eu não gostava: puxava carros. Ele puxava carros, mas não era violento, a não ser em situações especialíssimas, que demandasse puxar um carro, cuja chave mixa não servisse, ou a ligação direta não coubesse. Ele era um dos melhores e mais famosos profissionais nessa área e sabia antecipadamente qual a alternativa a ser aplicada ao automóvel fim. O pormenor da não-violência não dirimia o ilícito, porém, permitia que eu e ele convivêssemos, e que ele não esganasse a mãe. Chegava cada dia em um veículo novo, e naquele dia, trouxe um bê-éme-dablium e outro que não disse o nome a mim. Começava a contar sobre seu dia de trabalho árduo e toda adrenalina enfrentada.
– Só puxo importado de incomenda, ocê sabe, num é, meu love? Pois essa incomenda...
E eu abria uma nova resma para ouvir sua história de contraventor. Ele contando e eu desenhando crash, bum, bang; crash, bum, bang; crash, bum, bang...
Eu não era negativa! Era a adrenalina que eu hauria de suas narrações que me inspiravam essas possibilidades explosivas. Ele parou. Eu parei. Entreolhamo-nos.
– Ocê num é normar, Santina!
Peguei imediatamente um papel novo. Iria ele mudar o discurso?
– Num dá pra discuti cuntigo numa nice? Tô a fim de falá dessa tua mania de desenhá coisas quando arguém fala cuntigo, quando arguém visita nóis... Cara, ocê pricisa de ajuda dessas pra cuca! Óia, vô passá esse bê-éme-dablium e ôtro carrão que puxei hoje, e vô te pagá um médico de cabeça.
Desenhei um machado, porque fiquei ofendida de ele me achar tan tan. Em seguida o perdoei e rasguei o desenho. Não gosto de rasgar meus desenhos, mas o machado foi uma grosseria!
Ele foi dormir e, nesse instante, a mãe dele e Cristina entraram e rumaram para o quarto. A mãe possuia uma cópia de nossa chave, e Cristina entrou atrás dela, no vácuo.
– Ô fio, teve uns puliça li prucurano lá in casa, hoje! O qui ocê feiz errado? Aposto que se feiz coisa errada, foi Cristina que te levô pra fazê! Eu, tudo que insinei, eu e teu pai – que Deus o tenha! – foi munto diritim, cuma se deve de ser um profissionar! Se ocê puxô os carro errado, foi pruque Cristina meteu o dedo!
– Eu não! Nem saí com ele dessa vez, tá? Ele foi sozinho e trouxe aí esse bê-éme-dablium e o ronda, que tá rente ao bê-éme-dablium.
– Ah é, bem-ê!? E cuma um home suzim dirige dois carro, ao mêstempo, hem? Ele é grande, nem num é dois!
– Tá. Eu dirigi um, mas só dirigi. Não o influenciei.
– Ocêis duais queri pará de gritá in minha cabeça? Tô cansado, e inda de ressaca! Os puliça fôru simbora, num fôru?
– Fôru, né? Num acharo carro nin um lá in casa... Num acharo ocê! Fôru simbora!
– Santina! Faiz ôtra sopa daquela de onti, meu love!? Tá iscuitano? Santina! Uma sopa, iscuitô!? Calim a boca, senão ela num iscuita nada. Se tem gente falano, se tem furdunço, ela num iscuita.  – As mulheres silenciaram. – Meu love? Santina!
– Diga, love!?
– Faiz uma sopa daquela de onti? Cê faiz?
– Faço, love! Faço sim. Quer cerveja também?
– Quero. Trais aqui pru quarto? Trais e repõe. Vô tomá todas! Inganei os puliça hoje, viu, meu love? Passei os home pra trais! Tenho de comemorar!
Eu servi em uma bandeja, três pratos de sopa; levei as cervejas e reabasteci o trio até às quatro da manhã. Eles desabaram sobre minha cama. Cristina, de tão bêbada, tombou sobre o burro velho, e a mãe derreou para o lado. Abri a geladeira, peguei dois cachos de uvas e as espalhei a volta deles.
Fazer vinho seria muito trabalhoso, com tão pouca matéria-prima? Talvez não! Tive uma ideia e peguei minhas muitas facas. Levei-as para o quarto e comecei cortando as três gargantas. Espirrou vinho quente!
Eu devia ter trazido gelo? Não sei, o vinho estava mais quente que de costume. A cama ficou encharcada de vinho, isso, às vezes, era inevitável. Saí do quarto porque aquele não era o cheiro de vinho que eu estava habituada a beber. Fiquei com o estômago enjoado, também porque Cristina usava um perfume forte demais e estragou a receita. Eu acho!
Saí pra tomar ar fresco e vi os dois carrões. Nunca havia entrado num daqueles carrões. Voltei ao interior do quarto, nauseada, e peguei a chave mixa suja de vinho, do bolso do burro velho. De tão bêbado, nem notaria! Sua mão estava fixada sobre a “reserva natural do país” de Cristina, e de lá não se moveu. Entrei no carro vermelho, luxuoso, dei ré; aproximei-o do outro e... crash! bum! bang!: engavetei o de trás no da frente!
velho. Mas aí, me apaixonei assim mesmo. Logo, não sou boa líder. Minha vida foi virando uma bagunça e eu fui ficando ainda mais sem horizontes, porque se não sou boa líder, implica em não saber liderar a mim mesma e entrei nessa de viver com o burro velho, bronco.Um dia ele chegou em casa com sua mãe. Ela já foi dando as ordens e eu fiquei só olhando e a perplexidade aumentando, pois um homem que causava tanto efeito visual devia ter senso de responsabilidade por sua própria imagem. Eu, em silêncio, tecia minhas reprovações.

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