P r e â m b u l o
(Por Lucinda da Consolação —
personagem narradora da história deste livro Colar de Pérolas)
Algumas pessoas viveram
experiências surreais e afirmam terem "nascido de novo" e outra
vez... Ou seja, nasceram duas ou mais vezes.
Dentre as que mais "nascem de
novo" e repetidamente estão aqueles profissionais cujas
profissões os
expõem com frequência ao perigo. Mas também existem exemplos de gente comum,
saída com vida de acidentes graves.
Tudo é modo de renascer.
Concebi a ideia de renascimento
quando entendi que eu não me enquadrava em nenhum desses dois casos. Renasci
por opção e tive três homens nessa gênese: Gabriel e Andrey Rezek (irmãos) e
Vincent Travatti. Conheci-os na seguinte ordem: Vincent Travatti, Andrey e seu
amigo, Mauro Costabrava ‒ um doce bastante amargo ‒,
depois Gabriel.
Minha necessidade de nascer de novo
foi o modo que encontrei de sobreviver a primeira vida, uma primeira vida que
eu me recusei a aceitar. Motivos? Oh!, eu os tinha!, e eles se iniciavam em
minha família consanguínea: meu pai, gaúcho severo, depois minha mãe, sergipana
submissa ao meu pai. Éramos doze frutos de duas árvores hipócritas, meus pais,
e como todos os frutos naturalmente caímos junto ao pé.
Todos de minha família eram sempre
impiedosamente discordantes ante minhas escolhas, e eu rejeitava a ideia de me
dizer “vítima”, porque defino vítima como aquele (a) que é derrotado (a). E eu
estava só começando a lutar.
Eu refletia que
tudo quanto buscasse haveria de ser em contestação a vidas alicerçadas em
aparências e crenças que sucumbiriam a testes de resistência e veracidade; que
o andar dos dias prestava-se a finalidades mais elevadas. Desejava ardentemente
conferir as tais finalidades; elas certamente iriam além de nos agrupar anos,
os quais sutis ou às escâncaras tentamos camuflar.
Felizmente, na
medida em que os anos se somavam à data do meu nascimento, correspondi
prontamente ao esperado e parti para construir meu mundo particular. Precisava
de um. Precisava também ir aos poucos esvaziando meus milhares de baldes de
ingenuidade. Não chegaria longe com eles. Pesavam e comprometiam minha visão da
realidade da vida. Para minha pouca idade eu até que era bem madura, mas para
meu projeto, essa maturidade estava aquém.
A quem olhasse
podia parecer cedo demais, mas para mim, quanto antes começasse, melhor. Eu
nascera em 1967, e essa geração carregava às veias sangue quente, determinação
para mudar o país. Eu tinha objetivo mais modesto: renovar a pessoa em mim,
renascer.
Para tanto, eu
constatara cedo, deveria fabricar uma família extrassanguínea, escolhendo os
melhores seres humanos que cruzassem meu caminho. Em primeira atitude estava a
busca de amigos, pois que sem eles, eu estaria figurativamente órfã.
Dar-lhes-ia oportunidade de provarem seu valor, sua lealdade para com os
demais, a honestidade consigo mesmos, e a mim, o que eu supunha merecer desde o
nascimento: uma boa família. Hipocrisia em mim restasse, e corromperia meu
exército, anulando meus objetivos. Assim, eu tinha como uma de minhas grandes
empreitadas extirpá-la de dentro de mim (em definitivo), pois eu era hipocrisia
decantada e armazenada em odre nobre.
Meu primeiro amor
foi Gabriel Rezek. Ah!, que saudade indissolúvel! Ele morreu. Fiquei viúva no
sentimento por ele. Sofri quase a morrer também, mas vivi e demorei a saber o
porquê. No princípio só sobrevivia de revolta e desejos sinistros. Hoje, quase
à meia idade, sei bem porque a morte me rejeitou: eu tinha um papel no mundo.
Não, não acho que a morte seja aleatória. Ela é seletiva. Por quê? Quisera eu
saber. Talvez porque seja parte integrante de Deus. Desacredito que o diabo
possa tanto. Morre-se, e como se morre, é orquestramento Divino, do tipo:
“Faça-se a luz!” E a luz foi feita. A morte é a escuridão para a vida; o oposto
de “Faça-se o homem!” E o homem foi feito, ou desfeito.
Gabriel, ah! Meu doce anjo!...
Mesmo depois de ele morrer, fez muito por mim. Num plano incompreensível pela
maioria dos humanos, ele renasceu por mim, como uma terna viagem espectral, que
somente no decorrer dessa história irá se desenrolar ao leitor.
Em eu verificar
que a renovação da pessoa demandaria tempo, tratei de me ocupar de atividades
afins, ou de meras ferramentas de sobrevivência, embora urgisse construir um
mundo. Tentei outro(s) namorado(s), busquei alargar minha teia de amigos, pois
não se constrói um mundo sozinha, tampouco num instante. Por outro turno, a
necessidade de um mundo novo pode ser percebida num átimo.
Eu principiara o
processo de reconstrução do meu novo mundo, crendo merecer o melhor, desejando
cercar-me de pessoas de mentes abertas, esclarecidas, a nata, pois que essa era
minha noção mais básica da importância do ser humano. O ser humano, nessa minha
etapa primitiva, não valia pelo que era essencialmente, mas pelo que
socialmente representava.
O momento em que
sobre isso refleti, já depois da morte de Gabriel, aconteceu em um daqueles
exercícios mentais de introspecção, os mesmos que se tornaram rituais em meu
existir, tal qual o de me alimentar, dormir... Eu vinha avaliando e comparando
aqueles três grandes amores de minha vida: Gabriel e seu irmão Andrey Rezek e
Vincent Travatti. Três titãs que clareavam a cúpula escura, revestidora de meu
mundo turvo. Eles me erigiam, conforme havia possibilidade, até que eu visse a
luz. Eles cumpriram esses papéis, todavia isso despertou em mim a necessidade
de me despir daquela que não era eu e que, sobretudo, eu repudiava quem fosse.
Dessa feita, aquele trio do bem, amou-me sem medir a importância da representatividade
de meu papel social perante o mundo deles. Essa minudência acordou a verdadeira
Lucinda em mim.
Antes, porém, de
dissertar sobre esse fundamento comparativo que me norteou, convém desmentir
quaisquer impressões de que haja sido fácil detectar e expungir essa mácula de
meu caráter, a hipocrisia. Apresso-me em explicar, por ora superficialmente, a
agonia que é despir-se duma índole, por mínima que ela seja.
Veja-se que, por
mais pisadas que hajam sido as etapas de infância e adolescência de alguém, a
imaturidade sempre constará de qualquer currículo existencial. Não se pode
galgar a maturidade total sem algum grau de experimentação, aquele que só é
agregado ao ser humano no transcorrer da vida. A maturidade quase sempre é
transportada no mesmo veículo que nos acumula a idade sobre os ombros. Então,
talvez eu pudesse justificar-me, atribuindo a essa imaturidade todas as falhas
no tônus raso que constituía minha personalidade. Mas não, nego-me a usar
subterfúgios tão ingênuos e fáceis de serem contestados em qualquer tribunal do
senso comum. Eu não seria estúpida a tal ponto.
Por isso, preciso
enfatizar o quanto doeu a incursão que tive de fazer para dentro de meu
"eu”, porque uma vez diagnosticado o mecanismo que me corrompia, era
preciso desativá-lo. Eis o grande enfrentamento autoflagelante! Eu devia
remover esse mecanismo danoso, retornando a minha base de controle mental, sem
causar estragos colaterais, além daqueles suportáveis, e isso é algo impossível
de medir ou testar, senão, por intermédio do método de acerto e erro.
A estrada que eu
estava tentando mapear para seguir era como andar sobre brasas. Todavia não me
acovardei. Jamais conheci a verdadeira função da covardia, portanto, aqui, ela
não foi aplicada. Enfrentei meus demônios interiores, meus medos. É claro que o
momento exato de fazê-lo foi acionado pela alavanca da dor e da observação,
direcionada aos três grandes homens, anteriormente citados, que me amaram e aos
quais amei.
Aqueles três
cavalheiros se prenderam a uma essência em mim que eu apenas supusera existir.
Durante, e depois do convívio com eles, tive certeza de que, se eles viam em
mim algo que eu suspeitava existir, convinha investir numa busca, como se
buscasse o ar. Não somente parecia me convir. Foi mais do que isso. Eu passara
a crer que só em meu verdadeiro "eu” ser liberto, defrontar-me-ia com o
nascedouro de minha paz interior, ou um sentir nomenclaturado de felicidade.
Eles, pois, viram
meu interior, viram o melhor de mim. O modo como me viam, fazia eclodir o meu
lado mais essencial. Eu era com eles, quem eu realmente desejava ser. Com
Gabriel, eu me sentia inteira, com Vincent, eu me sentia gente. Andrey Rezek
era meu porto.
Essa tradução
útil, de mim por mim mesma, dava-me sentido de vida e de quietude interior; de ilimitado
bem-estar. O meu foco e tema reinavam absolutos naquele êxtase pessoal. O que
restava de mim, afora isso, configurava-se inexpressivo, sem qualquer
potencialidade valorável como ser humano.
Dito isso,
ratifico a afirmação anterior de que a necessidade de um mundo novo possa ser
percebida num átimo, mas também faço a adenda de que não é somente a
necessidade de um mundo novo que pode ser percebida num átimo; a dimensão do
mundo que se tem, o velho mundo interior, esse também pode se expor à vista em
um piscar de cílios.
Portanto, eu media
e comparava o amor recíproco acontecido entre mim, Gabriel e Vincent, quando se
deu o estalo, um tipo de heureca ainda embaçada, semelhante à visão que temos
quando nos encontramos no interior de um carro, olhando pelo para-brisa, a
chuva a cair lá fora. Vi, turvado assim, aquele caminho, e que mesmo com pouca
visibilidade, por ali eu seguiria, pois o que toldava minha visão, impedindo-me
de enxergar o que realmente era relevante, chamava-se hipocrisia. Ah!, que inimiga
de peso!, por que inserida não na carne, nem digo que no espírito, mas na
personalidade (e lobotomias são proibidas no Brasil). Exigiria, pois, outras
técnicas, a respeito das quais eu desconhecia casos de tentativas realmente
bem-sucedidas. Mas a incursão interior estava se dando; eu ia identificando o
mecanismo corruptor do meu ser, embora enxergasse apenas ínfima quantidade do
alto teor de hipocrisia contido naquele pensamento seletivo, requeridor de
atores geniais para meu teatro pessoal.
O alto grau dessa
hipocrisia, imiscuída às qualidades que eu buscava na pretensa família
extrassanguínea, dizia-me que eles deveriam ser os melhores, os perfeitos...
Não era? Foi o que afirmei, não foi? Pois bem, é importante observar que esse
pensar era, indubitavelmente, um pensar engastado de hipocrisia, aquela falsa
devoção, obra psíquica que me fizera ter a mim mesma na conta da mais especial
de todas as criaturas, espécie de supremacia, reduto de vaidade. Eu nem sequer
admitia ou supunha que as pessoas não eram tolas.
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