Dedo-amigo
Minha luz estava apagada quando abandonei Adriana.
Ela tinha cinco anos, chorava estendendo-me a mãozinha, enquanto eu ia embora.
Minha mãe e meu pai estavam mortos. Eu tinha de ir, matando também Adrianinha,
porque quando perdemos quem amamos, alguém tem de pagar, e se não
aparecer um
culpado real, pegamos alguém que amamos muito e punimos, como se disséssemos a
nós mesmos que devemos perder tudo logo, numa dor só.
Fugi, cresci, ganhei dinheiro, fiquei
situado, mas não havia uma noite em que eu não me lembrasse de Adriana. Minha
consciência me dizia que eu a abandonara por motivo fútil, porém, como minha
treva interior – a da alma – não cedia, os anos se passaram.
Chegou-me um convite de casamento dela –
que ousadia! Enviei-lhe uma grande soma em dinheiro, como presente, supondo que
isso fosse magoá-la. Mas confirmei minha presença. O presente não foi
devolvido, então dei por certo que seria bem recebido. Compareci ao casamento.
Adriana,
de fato, mal não me recebeu. Porém, o que ela me disse ao pé do ouvido, me
aterrou e me fez repensar minha vida. Noutras circunstâncias não me teria
tocado, mas naquele momento eu estava me sentindo completo, de passado
devidamente punido, no tamanho de minha justiça e sentindo-me perdoado. Como
fora fácil! Eu pensara. Sim, eu estava feliz, em um momento raro de paz. Minha
alma estava iluminada, e foi por isso que minha sensibilidade me golpeou com as
palavras que ouvi de Adriana. Ela me sussurrou que eu não significava mais do
que um mero convidado, um estranho. Agradeceu-me pelo rico presente e me disse
que ele seria somado aos outros milhões que ganharia em sua longa vida e que
seguiria meu exemplo, importando-se apenas consigo mesma, com o marido, e com
os filhos que, por ventura, viesse a ter, o que já a tornaria bem superior a
mim, pois eu a abandonara.
Deu-me uma prova de seu intento, quando
abandonou, meses depois, nossa tia – que tia que generosamente a criara – numa
clínica para doentes mentais. Nunca mais foi visitá-la.
Minha irmãzinha se tornara, portanto,
minha discípula exemplar.
Assim, eu me consumi em remorsos e doei quase
tudo que ganhei em na vida de egoísmo. Parte para a clínica, parte para outras
casas de caridade. Fiquei somente com uns trocados no banco para pagar despesas
com meu funeral, pois a morte é certa para todos, e para ajudar gente em
situação pior do que a minha, caso eu encontrasse por aí.
Para o relacionamento meu com Adriana, dificilmente
haveria conserto, mas existiam pessoas perdidas, às quais eu poderia dar
ouvidos, um copo d’água, ajudar a chegar a um hospital... Eu era instruído,
conhecia as instituições.
Enquanto isso, deixaria que Adriana me
visse nesse outro tipo de vida e de luta, sendo um morador de rua, vivendo como
eles, para poder fazer algo por eles. Assim ela, talvez, fizesse o caminho de
volta e se curasse do mal que lhe plantei na alma. Procurei me voltar para meu
espírito, a morada de Deus, que eu mantivera fechada até ali. Dali pra frente
seria um ser humano de verdade.
Os anjos estão por toda parte, seja uma
maneira simbólica de dizer da beleza e pureza de outro ser humano que amamos,
ou pela luz lançada sobre nossos terrores, muitas vezes nos mostrando saídas
simples ao final do túnel que cavamos. Essa luz não havia se mostrado antes, por
que eu estava cheio de dor e revolta. A morte de meus pais, assassinados
inocentemente, sem ninguém ter sido punido... Aquilo deflagrara em mim,
sentimentos com os quais eu não soubera lidar.
Minha luz se apagara, e eu apagara a luz
que deveria cativar em Adriana, só uma criança, na época. Não a amei “sobre
todas as coisas”, mandamento difícil! Não a amei sobre a minha dor! Escondi-me
debaixo do egoísmo, ressentimento, até ser tarde demais.
A fim de ser visto por Adriana, em minha
luta atual, e quem sabe, comovê-la e demovê-la de sua tendência em copiar
aquele homem vil que eu tinha me tornado, virei seguidor dela – para não dizer
perseguidor. Morando na rua, eu dormia nos bancos que encontrava, inclusive nas
paradas de ônibus, pois vivi minha vida inteira dormindo em uma cama fofinha,
daí que um banco, uma parada de ônibus, é o mais próximo de uma cama que posso
encontrar na rua. Encarar o chão frio... não, eu ainda não consigo.
Assim, durmo sempre o mais próximo
possível do caminho cotidiano de Adriana. Faço bicos pra ganhar o alimento
diário e hospedo-me nas noites mais frias sob a caridade de gente humana, uma
gente que, como eu, aprendeu a não enxergar só a aparência, mas o ser humano.
Tenho fé que Adriana voltará a ser um ser
humano gentil e altruísta. Que se curará da doença que transmiti a ela,
dando-lhe o péssimo exemplo do abandono. Talvez algum dia ela me perdoe.
Aprendi com meus erros e não quero que
minha irmã deixe este planeta sem conhecer a paz que esse aprendizado traz. Ela
sabe quem eu sou e não posso reparar os anos de ausências que lhe propiciei.
Pouco posso fazer por mim mesmo, mas olho por ela e clamo por ela. Acompanho
seus passos. Intento me redimir. Só posso cuidar dela do modo que ela me
permite: em prece.
Houve um tempo em que pensei que ser
morador de rua fosse a pior coisa que pudesse acontecer a vida de alguém.
Estava enganado. Tudo que se pensa perder, como dignidade, bens materiais...
isso não é nada se comparado a perder Adriana. Perder Adriana foi como perder a
visão e ter de habituar-me ao escuro. Abandonei Adriana, mas no fundo, achava
que não fosse recíproco. Foi.
Durmo e acordo pensando nela, minha irmã,
meu sangue, minha carne. Ela corre, almoça, trabalha, edifica mais e mais muros
entre nós. Eu, por meu lado, a cada dia ponho um tijolinho de esperança na vida
de um companheiro de rua. É das ruas que volto pra ela; sou dela, embora ela
não saiba. Sinto que algum dia meu amor vai me levar à redenção. Eu conto isso ao
povo da televisão que vem me entrevistar aqui, onde passo meus dias e noites e onde
cresço espiritualmente. Sei que Adriana me vê, tenta me ignorar, mas não se
pode ignorar alguém como eu; eu incomodo. Brilho demais, em minha forma
original de gente.
Carrego este caderninho onde anoto essas
coisas. Hoje é 28 de janeiro de 2014. Nunca sei se vou acordar para o dia
seguinte. Sou Renato Mendes Santana e estou com um pressentimento estranho
sobre esta noite em especial. Se eu não acordar, que algum “dedo-amigo” conclua
este relato.
Sou o Sargento Almeida, encontrei o corpo
do morador de rua, Renato Mendes Santana, às 00h35min da madrugada do dia 29 de
janeiro de 2014, vítima de alguns jovens arruaceiros. Eles jogaram álcool no mendigo,
enquanto este dormia. O mendigo Renato Mendes Santana, já estava em óbito
quando nossa viatura chegou ao local.
Meus pêsames à Dona Adriana.
Sou o “dedo amigo” que encerra o diário do
seu irmão, neste dia vergonhoso para a sociedade brasiliense, nacional e para a
humanidade.
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