A folha e eu
Tempos estes! Tudo que dizemos pode se virar contra
nós em mecanismos de redes sociais. É a agonia da coisa dita. A agonia de se
viver as palavras que se encadeiam, sem antes filosofar os prós e
os contras
delas; verificar se sobrevivem e como possam sobreviver aos crivos mais
diversos. Tal qual a Bíblia, pra correr menos risco de afetar o inimaginável, é
preciso ser genérico. E se o pensamento for se expandindo em generalidades vai
acabar virando antibiótico mental. O escritor desde sempre é martelado pelo que
disse ou deixou de dizer, e num desvão ainda cabe o que estaria em certas
entrelinhas, um sutil “buraco de minhoca”. Diga, da mais rebuscada à simples
frase; escreva um verso. Não há de escapar à malha. Sujeita a toda sorte de
subjetividades interpretativas, de uma delas suplico isenção. Aquela em que me
tomem por saudosista. Nem vá manipular disso uma crítica a quem o seja. Todos
são aquilo que são, não ouso criticar. Apenas eu não sou alguém que se apega à
saudade e vai-se deixando invadir por ela de modo a todo o presente se desfazer
no ontem, no anteontem, dia desses, ano passado... Fixei-me no hoje,
especialmente no agora, neste segundo. Opa!, e a próxima fração de tempo já me
resgata e me põe a galope dentro do futuro. Abro os braços e me deixo levar
pelo frescor da cavalgada. Nesse espaço eu me deleito em uma tranquilidade sem
dívidas. Não há nada a reclamar ou reparar. Dei o melhor de mim. Nalgum momento
posso ter sido medíocre. Desagradei até a mim mesma. Ficou isso por aquilo e
nada mais restou a cerzir.
Contudo, nos entrementes da vida,
vejo que há na árvore uma folha que se amarelou e negou-se a cair. Fica ali,
chamando a minha atenção. Ela deve à árvore ou a árvore deve a ela? Essa
pergunta tirou-me de meu habitual estado de agora.
Aquela folha que não quis cair, transformou-se, rapidamente, em uma lembrança
dentro de mim que também se fixou. O calendário marca segunda-feira. Havia
muitas segundas-feiras que eu avistava aquela folha teimosa, meio amarelada,
como a maioria dos materiais sujeitos ao tempo. Até nossa pele, vejo eu, ganha
tom desbotado. Ali estava a folha, que por algum motivo não caía. Havia chovido
muito ultimamente, e ventado. Ela permanecera presa. Eu pensei que se eu
tocasse nela, com um mínimo de esforço, desgarrá-la-ia de sua insistência prejudicial
à árvore. Pensei que se ela não desocupasse espaço, outra folha viçosa estaria
impedida de nascer. Felizmente não ocorre assim com seres humanos. Nascemos
despreocupados de se há ou não espaço. Deve ser por isso que acabamos nos
amontoando em espaços exíguos e nos enfileirando em eterno reclamar dos senãos de nossa absoluta falta de ser
árvore. Tem ali, no mundo árvore, alguma espécie de planejamento, e tudo que
não é mais digno e salutar para a árvore vai descendo ao chão, viajando pelo
ar, rebrotando ou adubando. Tudo no mundo árvore possui destino claro. O mundo
humano tem mais imprevisibilidades do que toda a população árvore do mundo da história
das árvores. Impossível ponderar o humano. Em demasiada presunção, cogitei que
o planejamento daquela folha era o de me atingir, enquanto organismo
individualista que me tornei, incapaz do coletivo, este entrelaçado ao
anteontem, às segundas-feiras que invariavelmente me chegavam cartas suas. Desde
o Norte ao Centro-Oeste as cartas demoravam pontualmente sete dias para
chegarem às minhas mãos. Com brevidade eu as respondia, e eram outros sete dias
de viagem até as suas mãos. Construímos, de cada lado, grande chumaço de
relatos de felicidades e de angústias divididas. Compartilhamos nossos sonhos e
nossos medos. Com o passar do tempo ¾
estar presa no presente é trauma? ¾
as cartas de ambos os lados rarearam. E as redes sociais chegaram para
extingui-las. E sepultamo-las de vez, na agonia das coisas ditas. Na agonia de
se viver cada palavra que se encadeava de supetão, naquela simplicidade da
crença de nenhum mal-entendido e filosofias rasas. A filosofia vem de
pensamentos profundos, remoídos, revisitados, tão depurados que nada cause de
impacto ao coração. A filosofia pode ser um concerto para a alma, mas entregar
sua verdade a alguém é um concerto para o coração. O instante em que a coisa
dita se torna a agonia de ter de ser explicada, pois em si mesma tornou-se
insuficiente ou demasiada; se, por seu turno, necessita de medidas para
sobreviver ao crivo, tal qual a Bíblia, o antibiótico de amplo espectro, a fim
de correr menos risco de afetar o inimaginável, e ser martelado pelo que disse
ou deixou de dizer, e, num desvão, ainda cabendo o que estaria em supostas
entrelinhas, um sutil “buraco de minhoca”... A folha da árvore, de repente,
despencou. Foi como um click. As cartas haviam parado e as redes sociais
invadido o mundo, asfixiando a ternura de enviar cartas, frustrando a espera
pela resposta delas, que jamais, jamais outra vez chegariam. As redes sociais invadiram
o mundo, e é importante não ser saudosista, porque ser saudosista é admitir-se
folha amarelada. Melhor se recompor no agora.
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