12 de maio de 2020

A folha e eu, texto de Maria Montillarez


A folha e eu

       Tempos estes! Tudo que dizemos pode se virar contra nós em mecanismos de redes sociais. É a agonia da coisa dita. A agonia de se viver as palavras que se encadeiam, sem antes filosofar os prós e
os contras delas; verificar se sobrevivem e como possam sobreviver aos crivos mais diversos. Tal qual a Bíblia, pra correr menos risco de afetar o inimaginável, é preciso ser genérico. E se o pensamento for se expandindo em generalidades vai acabar virando antibiótico mental. O escritor desde sempre é martelado pelo que disse ou deixou de dizer, e num desvão ainda cabe o que estaria em certas entrelinhas, um sutil “buraco de minhoca”. Diga, da mais rebuscada à simples frase; escreva um verso. Não há de escapar à malha. Sujeita a toda sorte de subjetividades interpretativas, de uma delas suplico isenção. Aquela em que me tomem por saudosista. Nem vá manipular disso uma crítica a quem o seja. Todos são aquilo que são, não ouso criticar. Apenas eu não sou alguém que se apega à saudade e vai-se deixando invadir por ela de modo a todo o presente se desfazer no ontem, no anteontem, dia desses, ano passado... Fixei-me no hoje, especialmente no agora, neste segundo. Opa!, e a próxima fração de tempo já me resgata e me põe a galope dentro do futuro. Abro os braços e me deixo levar pelo frescor da cavalgada. Nesse espaço eu me deleito em uma tranquilidade sem dívidas. Não há nada a reclamar ou reparar. Dei o melhor de mim. Nalgum momento posso ter sido medíocre. Desagradei até a mim mesma. Ficou isso por aquilo e nada mais restou a cerzir.
Contudo, nos entrementes da vida, vejo que há na árvore uma folha que se amarelou e negou-se a cair. Fica ali, chamando a minha atenção. Ela deve à árvore ou a árvore deve a ela? Essa pergunta tirou-me de meu habitual estado de agora. Aquela folha que não quis cair, transformou-se, rapidamente, em uma lembrança dentro de mim que também se fixou. O calendário marca segunda-feira. Havia muitas segundas-feiras que eu avistava aquela folha teimosa, meio amarelada, como a maioria dos materiais sujeitos ao tempo. Até nossa pele, vejo eu, ganha tom desbotado. Ali estava a folha, que por algum motivo não caía. Havia chovido muito ultimamente, e ventado. Ela permanecera presa. Eu pensei que se eu tocasse nela, com um mínimo de esforço, desgarrá-la-ia de sua insistência prejudicial à árvore. Pensei que se ela não desocupasse espaço, outra folha viçosa estaria impedida de nascer. Felizmente não ocorre assim com seres humanos. Nascemos despreocupados de se há ou não espaço. Deve ser por isso que acabamos nos amontoando em espaços exíguos e nos enfileirando em eterno reclamar dos senãos de nossa absoluta falta de ser árvore. Tem ali, no mundo árvore, alguma espécie de planejamento, e tudo que não é mais digno e salutar para a árvore vai descendo ao chão, viajando pelo ar, rebrotando ou adubando. Tudo no mundo árvore possui destino claro. O mundo humano tem mais imprevisibilidades do que toda a população árvore do mundo da história das árvores. Impossível ponderar o humano. Em demasiada presunção, cogitei que o planejamento daquela folha era o de me atingir, enquanto organismo individualista que me tornei, incapaz do coletivo, este entrelaçado ao anteontem, às segundas-feiras que invariavelmente me chegavam cartas suas. Desde o Norte ao Centro-Oeste as cartas demoravam pontualmente sete dias para chegarem às minhas mãos. Com brevidade eu as respondia, e eram outros sete dias de viagem até as suas mãos. Construímos, de cada lado, grande chumaço de relatos de felicidades e de angústias divididas. Compartilhamos nossos sonhos e nossos medos. Com o passar do tempo ¾ estar presa no presente é trauma? ¾ as cartas de ambos os lados rarearam. E as redes sociais chegaram para extingui-las. E sepultamo-las de vez, na agonia das coisas ditas. Na agonia de se viver cada palavra que se encadeava de supetão, naquela simplicidade da crença de nenhum mal-entendido e filosofias rasas. A filosofia vem de pensamentos profundos, remoídos, revisitados, tão depurados que nada cause de impacto ao coração. A filosofia pode ser um concerto para a alma, mas entregar sua verdade a alguém é um concerto para o coração. O instante em que a coisa dita se torna a agonia de ter de ser explicada, pois em si mesma tornou-se insuficiente ou demasiada; se, por seu turno, necessita de medidas para sobreviver ao crivo, tal qual a Bíblia, o antibiótico de amplo espectro, a fim de correr menos risco de afetar o inimaginável, e ser martelado pelo que disse ou deixou de dizer, e, num desvão, ainda cabendo o que estaria em supostas entrelinhas, um sutil “buraco de minhoca”... A folha da árvore, de repente, despencou. Foi como um click. As cartas haviam parado e as redes sociais invadido o mundo, asfixiando a ternura de enviar cartas, frustrando a espera pela resposta delas, que jamais, jamais outra vez chegariam. As redes sociais invadiram o mundo, e é importante não ser saudosista, porque ser saudosista é admitir-se folha amarelada. Melhor se recompor no agora.

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