31 de maio de 2021

 

Atenção! Isso não está no catecismo 

(Texto de Maria Montillarez 2021)


Houve um tempo em que eu acreditava em tudo. E o que estava acima de qualquer dúvida era o amor de meus pais. Depois, eu acreditava em meus amigos e amigas. Acreditava na fé cristã, em meus professores e nos namorados. Acreditava inclusive em quem, sobretudo, eu não deveria acreditar: meus irmãos.

Atenção! Isso não está no catecismo.

À medida que eu fui crescendo, em idade não em estatura, acreditar em tudo já foi se tornando relativo. Não, em tudo não dava pra acreditar. Surgiam provas irrefutáveis de que, com sorte (se existisse, pois não acredito), só parte de tudo merecesse crédito.

Claro, dentro da parte do tudo que soava ainda crível, residia o amor de meus pais a mim.

Então fui entendendo que quem ama não espanca; facilita o acesso à educação formal; protege; cuida; alimenta... Quem ama, teoricamente, faz uma caralhada de coisas por nós, sendo pais ou não. E fazem porque amam, não por imposição de leis, deveres... Dão-se porque se importam, não porque sejam santificados pelos seus títulos de pais. Dão-se porque o amor é imperativo e não cabe discussão. Portanto, se pairarem dúvidas de que o amor é, no mínimo, a perfeição e infinitas regras, esteja certo de que aí se encontrarão destroços de enchente, exceto, amor.

Se é dever, não é amor; se você se esqueceu, não foi amor.

E se o amor indubitável dos pais derrearem para aqueles discursos óbvios de “não vejo a hora de você se casar”, que para o bom entendedor é o mesmo que não vejo a hora de você fazer até a merda de se casar, mas quero me livrar de você... Estão acesas todas as luzes de segurança que avisam que está na hora de você tomar seu rumo de um jeito ou de outro, podendo ou não.

O amor não se cansa. “Mas eu que te amo, meu filho(a), se você se casar, vem dormir aqui todos os dias, não vou desfazer teu quarto, nem tua cama; vou deixar teu lugar na mesa... Olha, se teu casamento der em um lugar obscuro e agressivo demais, vem pra casa. Esta sempre será tua casa e sempre seremos teus pais. Melhor dizendo, não casa não. Sabe, tem a Matemática, as probabilidades... E com casamentos as probabilidades são as piores possíveis. Mas é claro que vamos rezar, enfim, bater tambor pra tu acertar nessa loteria. Aí, traz nossos netos, que a gente vai tentar cuidar, mesmo com essas nossas colunas já tão podres. Mas o certo é que tu voltes, com o bom ou o ruim que resultar desse jogo.” Isso parece amor, e até suspeito que seja, mas há um egoísmo enorme latente e o discursinho do quartinho, caminha e lugarzinho à mesa, não são bons sinais de estar havendo a melhor das torcidas, nem das rezas e tambores.

Cavou-se outra vala onde enterrei a ideia de amor materno-paterno.

Os professores e a fé cristã, logo entendi, eram papagaios, e ambos maltratavam pessoas, mas, foi a fé cristã quem matou milhões. Isto tornou impossível que eu aceitasse o pedido protocolar de perdão do Papa, e quanto aos professores, perderam o poder de abusar, mas a lei limitou a cátedra. Não dá pra acreditar em quem ensina o que já não acredita.

E continuei crescendo, como é inevitável. Por minha escolha, parava por ali mesmo. Todo mundo sabe que os pais são os protótipos do que hoje convencionou-se chamar copia e cola. Repetem o que os pais deles fizeram e a conta vai sendo anotada na cadernetinha dos antepassados carrancistas.

Pela bondade divina temos os amigos.

Alguns nos acompanharam desde a infância. Isso por si só já é atestado de confiança, mãos no fogo e outras pieguices que a gente descobre rapidinho, quando no teste de fogo, a pessoa não encosta nem em um palito de fósforo que está queimando até o meio. Na terça parte do palito, já o atira longe.

Aliás, um desses amigos “a toda prova” não topou nem riscar o fósforo, quanto mais esperar que ele queimasse até a terça parte.

O mais espantoso nem foi o teste de fogo. A proporção que foram arranjando namoro sério e até se casando, curiosamente, deixaram de me conhecer. Sabiam o nome do meu carro, quanto ele valia no mercado e meu ofício pra ganhar o pão. Mas eu, eu mesma, virei ninguém. Algumas vezes, apontada graças à minha peça de grife que ousei ostentar.

Os bens móveis e imóveis de todos eles também sugaram seus nomes para um tipo de fenômeno do buraco negro: sem a turbidez e sem o buraco, só o fenômeno. Portanto, todos perderam seus nomes e passaram a ser tratados por “o cara da BMW”, “Toyota”, “Audi”... Tinha também a fazenda isso, o jatinho aquilo, a empresa tal e qual...

A fim de manter minha sanidade, comecei a atender por “Fiat”, afinal, o nome que meus pais haviam me dado não era tão melhor assim.

Eu não precisava compreender, só ir vivendo e deixando a máquina me liquidificar, até porque não era nenhuma injustiça personalíssima, pois todos estavam dentro da mesma engrenagem, um salve-se quem puder.

Assim foi com os amigos. Estava na cara que não dava pra confiar em quem esquecera deliberadamente o meu nome. Às vezes, eu me perguntava se, à noite, depois de uma péssima foda, alguns deles se lembravam de que, na puberdade, haviam quebrado o primeiro código de nossa amizade, apalpando meus peitos, me encostando na parede, tentando transar comigo só pra se afirmar perante outros machos do grupo. Será que ficara ressentimento pela joelhada nas partes baixas, e toda a indiferença global tinha a ver com as partes baixas da anatomia masculina? Então, cadê o amor? Virou miado de gato?

Em teoria, o amor, talvez, devesse gemer. Miar denota pouca classe em se tratando do maior dos sentimentos na hierarquia bíblica.

E as amigas, então, se tornaram a penúltima melhor aposta. Amigas são capazes de entender as outras, inclusive e apesar das afinidades (ou infernidades) sexuais. Mas o quantum do amor entre amigas é tão peculiar que jamais deveria ter entrado nesse rol analítico. O primeiro dos motivos é a incapacidade de se manterem leais, principalmente, porque a competitividade feminina supera qualquer bolsa de valor em qualquer parte do mundo. Quem for afeito a Matemática ponha o cérebro pra ferver, e duvido que me conteste. A competitividade é tão evidente, que se você tiver duas filhas, já poderá constatar isso no berço. Se tiver só uma, ela vai querer tomar o lugar da esposa no coração do marido.

Dá pra imaginar o que uma amiga é capaz de fazer a outra, por exemplo, se se interessarem pelo mesmo cara? É o golpe fatal, e o problema não se resolverá em poucas reencarnações. Se nascerem no mesmo hospital a rixa terá início no berçário.

E, graças aos deuses, existem os irmãos, ou estaríamos completamente fodidos nesta Terra egoísta, não é? Afinal, nossos pais querem nos ver pelas costas, nossos amiguinhos de infância substituíram nossos nomes por alcunhas estrambóticas, reduzindo-nos à uma figura de retórica metonímica, a sinédoque, que é o objeto pelo indivíduo, e as doces amigas, que choraram em nossos ombros e nós nos delas, viraram carmas pra eternidade se ocupar.

Quanto a fé cristã e os professores ficaram arquivados em uma de minhas pastas com o seguinte rótulo: Cuidado! Tóxico! Perigoso N Não manusear.

Os namorados terminaram em uma análise que cabe em uma linha: ex-.

Depois disso, o vácuo.

Graças aos deuses temos os irmãos. E como as questões envolvendo irmãos são tantas e das mais extravagantes, vi por bem resumir a um elementar e emblemático exemplo do superlativo amor que une e desune irmãos: Inventário. Quem já participou de um, certamente entende, com propriedade, a extensão do amor entre irmãos, aí.

Portanto, este não é um texto sobre confiança, esperança e fé. É um texto sobre amor. O que sobrar do amor nos aspectos mais fundamentais da vida, poderá ser diluído em uma boa garrafa de sua bebida preferida, e talvez seja possível descer redondo.