Atenção! Isso não está no catecismo
(Texto de Maria Montillarez 2021)
Houve um tempo em que eu acreditava em
tudo. E o que estava acima de qualquer dúvida era o amor de meus pais. Depois,
eu acreditava em meus amigos e amigas. Acreditava na fé cristã, em meus
professores e nos namorados. Acreditava inclusive em quem, sobretudo, eu não
deveria acreditar: meus irmãos.
Atenção!
Isso não está no catecismo.
À medida que eu fui crescendo, em idade
não em estatura, acreditar em tudo já foi se tornando relativo. Não, em tudo
não dava pra acreditar. Surgiam provas irrefutáveis de que, com sorte (se
existisse, pois não acredito), só parte de tudo merecesse crédito.
Claro, dentro da parte do tudo que soava
ainda crível, residia o amor de meus pais a mim.
Então fui entendendo que quem ama não
espanca; facilita o acesso à educação formal; protege; cuida; alimenta... Quem
ama, teoricamente, faz uma caralhada de coisas por nós, sendo pais ou não. E
fazem porque amam, não por imposição de leis, deveres... Dão-se porque se
importam, não porque sejam santificados pelos seus títulos de pais. Dão-se
porque o amor é imperativo e não cabe discussão. Portanto, se pairarem dúvidas
de que o amor é, no mínimo, a perfeição e infinitas regras, esteja certo de que
aí se encontrarão destroços de enchente, exceto, amor.
Se é dever, não é amor; se você se
esqueceu, não foi amor.
E se o amor indubitável dos pais derrearem
para aqueles discursos óbvios de “não vejo a hora de você se casar”, que para o
bom entendedor é o mesmo que não vejo a hora de você fazer até a merda de se
casar, mas quero me livrar de você... Estão acesas todas as luzes de segurança
que avisam que está na hora de você tomar seu rumo de um jeito ou de outro,
podendo ou não.
O amor não se cansa. “Mas eu que te amo,
meu filho(a), se você se casar, vem dormir aqui todos os dias, não vou desfazer
teu quarto, nem tua cama; vou deixar teu lugar na mesa... Olha, se teu
casamento der em um lugar obscuro e agressivo demais, vem pra casa. Esta sempre
será tua casa e sempre seremos teus pais. Melhor dizendo, não casa não. Sabe,
tem a Matemática, as probabilidades... E com casamentos as probabilidades são
as piores possíveis. Mas é claro que vamos rezar, enfim, bater tambor pra tu
acertar nessa loteria. Aí, traz nossos netos, que a gente vai tentar cuidar,
mesmo com essas nossas colunas já tão podres. Mas o certo é que tu voltes, com
o bom ou o ruim que resultar desse jogo.” Isso parece amor, e até suspeito que
seja, mas há um egoísmo enorme latente e o discursinho do quartinho, caminha e
lugarzinho à mesa, não são bons sinais de estar havendo a melhor das torcidas,
nem das rezas e tambores.
Cavou-se outra vala onde enterrei a ideia
de amor materno-paterno.
Os professores e a fé cristã, logo
entendi, eram papagaios, e ambos maltratavam pessoas, mas, foi a fé cristã quem
matou milhões. Isto tornou impossível que eu aceitasse o pedido protocolar de
perdão do Papa, e quanto aos professores, perderam o poder de abusar, mas a lei
limitou a cátedra. Não dá pra acreditar em quem ensina o que já não acredita.
E continuei crescendo, como é inevitável.
Por minha escolha, parava por ali mesmo. Todo mundo sabe que os pais são os
protótipos do que hoje convencionou-se chamar copia e cola. Repetem o que os
pais deles fizeram e a conta vai sendo anotada na cadernetinha dos antepassados
carrancistas.
Pela bondade divina temos os amigos.
Alguns nos acompanharam desde a infância.
Isso por si só já é atestado de confiança, mãos no fogo e outras pieguices que
a gente descobre rapidinho, quando no teste de fogo, a pessoa não encosta nem
em um palito de fósforo que está queimando até o meio. Na terça parte do palito,
já o atira longe.
Aliás, um desses amigos “a toda prova”
não topou nem riscar o fósforo, quanto mais esperar que ele queimasse até a
terça parte.
O mais espantoso nem foi o teste de fogo.
A proporção que foram arranjando namoro sério e até se casando, curiosamente,
deixaram de me conhecer. Sabiam o nome do meu carro, quanto ele valia no
mercado e meu ofício pra ganhar o pão. Mas eu, eu mesma, virei ninguém. Algumas
vezes, apontada graças à minha peça de grife que ousei ostentar.
Os bens móveis e imóveis de todos eles
também sugaram seus nomes para um tipo de fenômeno do buraco negro: sem a
turbidez e sem o buraco, só o fenômeno. Portanto, todos perderam seus nomes e
passaram a ser tratados por “o cara da BMW”, “Toyota”, “Audi”... Tinha também a
fazenda isso, o jatinho aquilo, a empresa tal e qual...
A fim de manter minha sanidade, comecei a
atender por “Fiat”, afinal, o nome que meus pais haviam me dado não era tão
melhor assim.
Eu não precisava compreender, só ir
vivendo e deixando a máquina me liquidificar, até porque não era nenhuma
injustiça personalíssima, pois todos estavam dentro da mesma engrenagem, um
salve-se quem puder.
Assim foi com os amigos. Estava na cara
que não dava pra confiar em quem esquecera deliberadamente o meu nome. Às vezes,
eu me perguntava se, à noite, depois de uma péssima foda, alguns deles se
lembravam de que, na puberdade, haviam quebrado o primeiro código de nossa
amizade, apalpando meus peitos, me encostando na parede, tentando transar
comigo só pra se afirmar perante outros machos do grupo. Será que ficara
ressentimento pela joelhada nas partes baixas, e toda a indiferença global
tinha a ver com as partes baixas da anatomia masculina? Então, cadê o amor?
Virou miado de gato?
Em teoria, o amor, talvez, devesse gemer.
Miar denota pouca classe em se tratando do maior dos sentimentos na hierarquia
bíblica.
E as amigas, então, se tornaram a
penúltima melhor aposta. Amigas são capazes de entender as outras, inclusive e
apesar das afinidades (ou infernidades) sexuais. Mas o quantum do amor entre amigas é tão peculiar que jamais deveria ter
entrado nesse rol analítico. O primeiro dos motivos é a incapacidade de se
manterem leais, principalmente, porque a competitividade feminina supera
qualquer bolsa de valor em qualquer parte do mundo. Quem for afeito a
Matemática ponha o cérebro pra ferver, e duvido que me conteste. A
competitividade é tão evidente, que se você tiver duas filhas, já poderá constatar
isso no berço. Se tiver só uma, ela vai querer tomar o lugar da esposa no
coração do marido.
Dá pra imaginar o que uma amiga é capaz
de fazer a outra, por exemplo, se se interessarem pelo mesmo cara? É o golpe
fatal, e o problema não se resolverá em poucas reencarnações. Se nascerem no
mesmo hospital a rixa terá início no berçário.
E, graças aos deuses, existem os irmãos,
ou estaríamos completamente fodidos nesta Terra egoísta, não é? Afinal, nossos
pais querem nos ver pelas costas, nossos amiguinhos de infância substituíram
nossos nomes por alcunhas estrambóticas, reduzindo-nos à uma figura de retórica
metonímica, a sinédoque, que é o objeto pelo indivíduo, e as doces amigas, que
choraram em nossos ombros e nós nos delas, viraram carmas pra eternidade se
ocupar.
Quanto a fé cristã e os professores
ficaram arquivados em uma de minhas pastas com o seguinte rótulo: Cuidado! Tóxico!
Perigoso N
Não manusear.
Os namorados terminaram em uma análise
que cabe em uma linha: ex-.
Depois disso, o vácuo.
Graças aos deuses temos os irmãos. E como
as questões envolvendo irmãos são tantas e das mais extravagantes, vi por bem
resumir a um elementar e emblemático exemplo do superlativo amor que une e
desune irmãos: Inventário. Quem já
participou de um, certamente entende, com propriedade, a extensão do amor entre
irmãos, aí.
Portanto, este não é um texto sobre
confiança, esperança e fé. É um texto sobre amor. O que sobrar do amor nos aspectos
mais fundamentais da vida, poderá ser diluído em uma boa garrafa de sua bebida
preferida, e talvez seja possível descer redondo.