13 de maio de 2016

Trecho do conto "Homenagem à barata" do livro Arrebol, de Maria Montillarez.

Trecho do conto "Homenagem à barata" do livro Arrebol, de Maria Montillarez.É tudo tão longe e perto, incerto e simples, e tão complexo!... Por isso, decidi que, quando eu crescer quero ser barata, pra voar e mudar a casca, sem ninguém notar. Uma barata bem nojenta, detestável e sórdida, e então, estarei pronta para ser humano.Por enquanto, ainda estou só na categoria de inseto sem asa, e mesmo conseguindo involuir para barata, ficarei limitada pelo gênero, pois soube que até no reino baratóide só os machos têm asas que permitem voar. As fêmeas que são premiadas com um par de asas, são asas vestigiais[1], rudimentares, e não permitem que elas voem. Os jovens também são penalizados, porque seus anticorpos ainda são desguarnecidos e frágeis: as asas caem, como podres. É treinamento para o esgoto dos adultos. Que grande lixeira é o mundo! E só consigo ser inseto sem asas, ou de asas frágeis demais, quase transparentes, mas é inevitável involuir.
Quero ser barata marrom avermelhada ou daquelas empretejadas pelo habitat; de asas duras, quase um crustáceo. Para outro inseto me devorar, pisar, terá de ser mais forte do que eu.

Quero ser barata; nem gafanhoto nem lebre branquinha, nem desejável. Antes, o execrável, o tosco. Toda forma de vida bonitinha tende a ser presa favorita e fácil para algum predador.
Se baratas morrem, renascem aos bandos, e têm asas duplas. A barata escala e voa. Aceito que em minha condição de fêmea, eu faça apenas pequenos voos. Já é uma oportunidade. Baratas nunca morrem de verdade, nem sob a pata de um grandalhão. A história, o tempo de vida das baratas, confunde-se com a existência da própria humanidade. Fala-se em a origem delas datar do período Carbonífero.

Seja lá o que for o tal “Carbonífero”, a palavra não é feia. Num primeiro momento me remeteu a ideia de “carbono”, que dentre muitas utilidades, serve de instrumento transferidor. Mas não; carbonífero tem a ver com carvão, segundo me informaram altas fontes da geologia, que aqui não desejo exaltar ou rebaixar. Então, como carbonífero não tem a ver com carbono, não regula transferências; não tem o poder de causar as mutações que postulo aqui. Resta que, mutar de barata hexápode para bípede artrópode, de exoesqueleto e ovulação de dar inveja a inférteis de toda biodiversidade, gera-me uma atração quase animal. Involuir de bípede para barata é uma coisa mecânica e não apenas relativa à biodiversidade. Ser ou não ser barata, pode e deve ser questão de escolha.

Escolho ser barata. Nunca me acusarão de ter bom senso!, pois o que voga no mundo é caber no centro comum, a fim de ser útil no papel que se recebe para desempenhar sobre a terra.
 
Barata não gosta de viver em sociedade. Ninguém gosta. Portanto, está na gênese.

Raramente há moradias sem baratas. Toda barata costuma encontrar um escurinho para onde, esgueirando-se, possa se embrenhar (o escuro interno ou externo; um fosso qualquer serve!). E, parece que se involui para baratas num upa!: dois pares de patas meio que se atrofiam, ficam duas em contato com o solo, o cérebro, pluft!, dissolve-se, vira uma eca líquida. Adeus culpas e cáries!

A análise é otimista para aspirantes à barata, como eu. As baratas têm tanto apego a existência que, embora possuam curta longevidade – poucas duram mais do que um ano –, querem viver intensamente. Ah!, e que par de antenas as baratas têm!

Quanto às patas, não se cogite que duas patas são menos do que seis. Ah!, não são! Nem no caso das baratas bípedes com cérebro matemático (massa líquida? miolos de pote? Eca liquefeita? É por aí). Se alguma das patas se fende, a barata se arrasta com as que sobraram intactas (já viu?). Aliás, já viu como as baratas são esguias, mesmo se robustas? Baratas podem. Devem ser esquálidas e medir o mundo com essa visão baracnídea (misto de aranha, escorpião e... barata). O cérebro é algo dispensável, nesse estágio. Se a matemática sobreviver, crê-se, será por mera casualidade, talvez conveniência; não necessidade. Por isso, é fácil abominar também a matemática, a parte cinzenta inútil. Da cinza a cinza, pois!

Eu costumava gostar de palavras difíceis e soluções fáceis. Agora tenho pensado muito em tornar fáceis as duas coisas: palavras e soluções. Pirei na baratinha! Adotei gradualmente um pensamento à moda Kafka. Assim, de gênio para gênio, eu posso antegozar a transmutação e caber no entendimento comum. Kafkar é democrático, está até em música pop, senão vejamos: “Encontrei uma barata na cozinha. Eu olhei pra ela, ela olhou pra mim; ofereci a ela um pedaço de pudim; o curioso foi que ela, ela disse sim! (Banda de rock Inimigos do Rei).

Pode parecer alegórico, mas os adereços caem bem a tantas indivíduos!

Não é esperto ser gente. Acontece que, para se virar barata basta crescer, se desenvolver, adultecer, apodrecer... cer! Seja. O clube lhe dá as boas-vidas.

Kafka viu longe! Dizem que o cara era aficionado a ponto de escrever quase um tratado baratiano. Deve ser próprio de gênios mesmo, pois Clarisse Lispector fez uma personagem sua, degustar baratas. Chega a ter ares de goticismo e de Idade Média nisso, não chega? Cresce-se para baixo, e, de repente, pode-se notar que não é antinatural.

Fato é que, para se saber quando chegou sua vez e hora de barata, no ciclo vivencial, é simples. Às vezes dói, dizem; às vezes é natural e quase indetectável; tem quem já nasça pronto para baratear. É o nó inexplicável da existência, mas a barata interior há de entender – mesmo sem cérebro –, que ser barata é algo próximo de vocação. 

[1] Fonte: BONFIM, Abelardo M. (Nota da autora)
 
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